Os recentes tornados e vendavais no Sul do Brasil reacenderam a discussão sobre a proteção oferecida pelos seguros patrimoniais. O artigo examina como o risco de tornado é tratado nas apólices residencial, empresarial e condominial, destacando a importância da cobertura adicional de vendaval/furacão/ciclone/tornado/granizo e a distinção crucial em relação ao risco de alagamento/inundação. Analisa ainda dever de informação, função social do contrato de seguro e o papel do corretor na adequada estruturação das coberturas.
Felipe Bastos*
1. Introdução
Às vésperas do início da COP-30, o Sul do Brasil foi arrebatado por tornados e tempestades severas, gerando destelhamentos em massa, quedas de árvores e danos expressivos a residências, comércios e indústrias.
A cidade de Rio Bonito do Iguaçu, no Estado do Paraná, foi devastada, deixando cerca de 80% da área urbana detruída ou gravemente danificada. Até o momento, não há ainda um balanço financeiro oficial consolidado dos prejuízos na cidade, mas dados preliminares da Defesa Civil e da imprensa indicam que o tornado destruiu a maior parte da área urbana do município, com dezenas de mortes, centenas de feridos, milhares de desabrigados e danos severos à infraestrutura pública e privada.
Os eventos recolocam em evidência uma pergunta prática e cada vez mais recorrente: os seguros patrimoniais – notadamente os compreensivos (ou mutirrisco*,[1]) residencial[2], empresarial e condominial – efetivamente oferecem cobertura para tornados e vendavais?
A resposta, em linha com a prática de mercado, é ao mesmo tempo simples e incômoda: em tese há cobertura, mas quase sempre condicionada à contratação específica da cobertura adicional de “vendaval, furacão, ciclone, tornado, granizo” – e, ainda assim, com limitações contratuais que podem surpreender o segurado.
Este texto procura oferecer uma visão sintética do tema, com enfoque na estrutura dos produtos patrimoniais, na distinção entre tornado e alagamento e nos principais pontos de atenção sob o prisma do direito do consumidor e da função social do contrato de seguro.
2. Tornados e vendavais nas apólices patrimoniais
De forma geral, os seguros patrimoniais no Brasil – residencial, empresarial (compreensivo) e condominial – são estruturados em dois blocos: (i) uma cobertura básica obrigatória, normalmente restrita a incêndio, queda de raio e explosão; e (ii) coberturas adicionais facultativas, contratadas conforme o interesse do segurado mediante prêmio adicional.
É nesse segundo bloco de extensões de cobertura que, via de regra, aparece o pacote de riscos climáticos severos, descrito em muitos clausulados como “vendaval, furacão, ciclone, tornado, granizo (e eventualmente fumaça)”. Várias seguradoras nomeiam o tornado de forma expressa entre os eventos cobertos, aproximando-o de outros fenômenos de vento extremo.
Em linhas muito simplificadas, pode-se dizer que a exposição a tornados não está, em regra, amparada pela cobertura básica: o risco ingressa no contrato pela via da cobertura adicional de vendaval/furacão/ciclone/tornado/granizo. Sem essa contratação, o sinistro decorrente de tornado tende a ser qualificado como risco excluído.
3. Danos diretos, danos consequentes e principais limitações
Os clausulados costumam distinguir entre danos diretamente causados pelo fenômeno de vento – destelhamento, quebra de vidros, colapso de estruturas, queda de árvores sobre o imóvel – e danos consequentes, em especial a entrada de chuva pelas aberturas causadas pelo vendaval ou tornado, além de despesas de salvamento[3] e desentulho.
É comum que as condições gerais, quando contratada a cobertura adicional de vendaval, furacão, ciclone, tornado e granizo, estendam a cobertura aos danos de chuva desde que exista nexo de causalidade com a abertura gerada pelo evento coberto. Em cenários como os vivenciados no Sul, em que o imóvel é destelhado pelo tornado e, em seguida, a chuva intensa danifica mobiliário e equipamentos, essa conexão é técnica e juridicamente relevante, porque os danos de chuva passam a ser tratados como consequência direta do risco adicional de vendaval/tornado, e não como evento autônomo coberto pela cobertura básica de incêndio, queda de raio e explosão.
Contudo, mesmo quando a cobertura de vendaval/tornado está contratada, diversas limitações costumam existir: exclusão de bens a céu aberto (estoques externos, jardins, veículos no pátio), exclusão ou limitação para muros, cercas, antenas, painéis e placas, e cláusulas que exigem velocidade mínima do vento para caracterização do sinistro[4]. Em alguns casos, a soma dessas restrições pode reduzir sensivelmente a utilidade econômica da cobertura aos olhos do segurado. Por isso, o serviço do corretor de seguros no aconselhamento ao segurado, especificamente na negociação retirada de exclusões e de bens (interesses) não cobertos pelo seguro, é fundamental.
4. Tornado e vendaval não são alagamento: a possível lacuna de cobertura
Um ponto particularmente sensível é a distinção entre o dano de vento (vendaval/tornado) e o dano de água (alagamento/inundação). A experiência recente demonstra que os eventos extremos costumam ser compostos: vento forte, chuva volumosa e, não raro, transbordamento de rios ou sobrecarga do sistema de drenagem urbana.
Apesar disso, a maior parte dos produtos patrimoniais trata o alagamento como cobertura adicional autônoma, com regras próprias. O fato de o segurado ter contratado a cobertura de vendaval/furacão/ciclone/tornado não significa, por si só, que ele esteja amparado contra danos decorrentes de enchente generalizada, subida de rios ou retorno de água das galerias pluviais.
Em termos práticos, dois cenários ajudam a ilustrar o problema:
(i) imóvel destelhado pelo tornado, com entrada de água pelas aberturas – situação que tende a ser enquadrada como consequência direta do risco de vento, desde que o clausulado assim preveja; e
(ii) imóvel sem dano estrutural de vento, mas com térreo ou subsolo inundado pela elevação do nível da água na região – hipótese em que, como regra, se exige cobertura específica de alagamento/inundação (que são, no caso específico, as verdadeiras causas dos prejuízos). A dificuldade é que a penetração dessa cobertura de alagamento ainda é muito baixa no seguro residencial brasileiro, apesar da recorrência de eventos hidrológicos severos.
O resultado pode representar um descompasso entre a percepção do segurado – sobre ter cobertura contra tempestades – e a realidade do contrato, caso ele não seja adequadamente assessorado ou informado.
5. Dever de informação, CDC e função social do seguro
Sob a ótica do direito do consumidor (art. 46 do Código de Defesa do Consumidor – “CDC”) e também da Lei 15.040/2024 – a Lei do Contrato de Seguros (“LCS”), que entrará em vigor a partir de 11 de dezembro de 2025 –, a forma como esses riscos são delimitados nas apólices exige especial cuidado. Cláusulas que condicionam a cobertura à comprovação de velocidade mínima de vento, ou que excluem bens (rectius: interesses) que, intuitivamente, o segurado supõe estarem protegidos, precisam ser “redigidas de forma clara, compreensível e colocadas em destaque, sob pena de nulidade” (art. 48, §1º).[5]
A jurisprudência já enfrentou casos em que a rigidez de certas condições técnicas tornava praticamente impossível ao segurado demonstrar o cumprimento dos requisitos de cobertura ou de cláusulas que, na prática, foram reputadas abusivas, por frustrarem a legítima expectativa de cobertura, esvaziando a função social do seguro.[6] Nessas hipóteses, os tribunais têm recorrido aos princípios da boa-fé objetiva, da transparência e da interpretação mais favorável ao consumidor para mitigar o formalismo contratual.
Nesse contexto, ganha relevo – frise-se – o papel do corretor de seguros: em regiões de maior exposição a eventos extremos, como o Sul do país, a recomendação de contratação das coberturas adicionais de vendaval/tornado e de alagamento/inundação, com explicação clara de seus limites, deixa de ser um detalhe comercial para se tornar um ponto essencial de responsabilidade profissional.
6. Considerações finais
Em síntese, os tornados são, em regra, risco segurável nos seguros patrimoniais brasileiros, mas isso depende da contratação expressa da cobertura adicional de vendaval/furacão/ciclone/tornado/granizo e da leitura atenta de seus limites e restrições, que precisam vir redigidas de forma clara, compreensível e colocadas em destaque. A ausência dessa cobertura tende a levar à negativa de sinistro por parte das seguradoras.
Paralelamente, a baixa contratação de coberturas de alagamento/inundação deixa grande parte dos segurados expostos a um risco que, do ponto de vista do consumidor, se apresenta como parte de um mesmo “pacote” de tempestade.
Diante de uma realidade climática em que eventos extremos se tornam mais frequentes e severos, aprimorar a regulação, a modelagem de produtos e a comunicação com o segurado passa a ser, mais do que um desafio setorial, uma agenda de proteção de patrimônio e de reforço da confiança social no contrato de seguro.
(10.11.2025)
* Sócio e head de Seguros e Resseguros de FAS Advogados in cooperation with CMS. Advogado, professor e palestrante. Mestre em Direito pela University of Virginia School of Law (summa cum laude), MBA pela Escola de Negócios e Seguros e Bacharel em Direito pela UERJ.
[1] Tendo em vista o perfil predominante dos bens que foram destruídos ou avariados pelos tornados e vendavais ocorridos na útima semana, a análise se centrará nos seguros dos ramos compreensivos, deixando de fora os seguros patrimoniais de riscos nomeados e operacionais, destinados a empreendimentos muito mais complexos e que, por isso, exigem uma subscrição igualmente mais complexa de riscos.
[2] No mercado brasileiro, o seguro patrimonial residencial é, em regra, estruturado na forma de seguro compreensivo (multirrisco) residencial, embora, em termos técnico-jurídicos, seja possível a contratação de seguro apenas para o risco de incêndio para o imóvel residencial.
[3] A Lei 15.040/2024, que entrará em vigor a partir de 11/12/2025 reforça que as despesas de contenção e salvamento correm à conta da seguradora, não devendo consumir a garantia de seguro, nem mesmo se ficarem abaixo da franquia.
[4] É comum que clausulados cubram danos decorrentes de ventos com velocidade igual ou superior a 15 m/s ou 54 km/h, condicionando a própria caracterização do risco a esse parâmetro técnico.
[5] No AgInt no AREsp 1792346 – SP, o STJ reafirmou que a eficácia de uma cláusula limitativa depende da informação prévia e do esclarecimento de seu conteúdo ao consumidor (art. 46 do CDC). No caso, a cláusula restritiva, embora registrada na SUSEP, não foi devidamente informada na proposta, levando ao seu afastamento. No AgRg no AREsp 309669 – BA, o STJ não modificou acórdão que considerou abusiva uma cláusula que excluía a cobertura por morte natural, pois não foi redigida com o devido destaque, impedindo a ciência do segurado, que era idoso. A decisão reforça que não basta a existência da cláusula; ela precisa ser ostensiva e clara.
[6] Na Apelação Cível 50053657520228130701, o TJMG considerou abusiva a cláusula que excluía a cobertura para furto “parcial” de um equipamento, pois, além da falta de ciência inequívoca do segurado, a restrição comprometia a própria finalidade do seguro, que era proteger a integralidade do bem.