Editorial da Revista Será? Penso, logo duvido.
Engº Antonio Fernando Navarro - Entrevista para a Editora Roncarati, em 26.12.2015.
Pergunta: Prof. o que o Sr. comenta a respeito do incêndio ocorrido na Estação da Luz neste 21 de dezembro de 2015?
Navarro: Inicialmente tomo a liberdade de citar o título do Editorial da Revista Será? divulgado aos leitores neste dia de Natal, onde, o editorialista cita a imprevidência e as perdas ocorridas com a centenária Estação da Luz, referência da Cidade de São Paulo.
Ontem vi pelas lentes das câmeras da TV Globo, as cenas internas de um local bastante destruído, com o repórter enfatizando a rapidez do Governo do Estado em preservar a estrutura das fachadas, informando que o arquivo digital do Museu da Língua Portuguesa encontrava-se salvo.
Não sou um expert, mas um leitor que atua na área por cerca de 40 anos. Tive a oportunidade de entrar em locais incendiados e periciar locais, para a obtenção dos valores a serem indenizados.
Para não ficarmos apenas no minimalismo, através das lentes das câmeras pudemos observar:
1º - Excesso de material combustível comum (papel, tecido, madeira) em uma área relativamente reduzida. Eram montanhas de livros empilhados, formando trilhas, e dezenas de redes presas ao teto e, sobre elas refletores convencionais. Pisos eram de madeira e não pudemos observar o que era afixado nas paredes internas.
Nota 1: A rapidez da queima dos materiais é típica de um procedimento de combate a incêndios lento e não apropriado.
Nota 2: Um incêndio que atinge grandes áreas se dá quando os gases da combustão chegam a um ponto denominado de flashover. Se o socorro fosse imediato, por ocasião da passagem do primeiro caminhão dos bombeiros, e esse estivesse adequadamente equipado a probabilidade de perda total seria bastante reduzida.
Nota 3: O tamanho da perda é proporcional ao tempo dispendido para o início do controle do incêndio.
Pergunta: Prof. quais poderiam ser as falhas ocorridas, se é que existiram?
Navarro: Falhas são intrínsecas às atividades humanas, pois que somos falíveis. Posso enumerar algumas dessas, no meu ponto de vista, e, explicitando, que não estive no local, apenas acompanhei o desenvolvimento do incêndio pela televisão e assistí a uma reportagem na qual o repórter teve acesso ao interior do prédio e filmou tudo. Mas, vamos às minhas deduções:
1ª. Em todo o ambiente improvisado, ou onde o que ocorra em seu interior não tenha sido previsto em projeto haverá sempre uma maior probabilidade de ocorrência de sinistros. Isso é fato;
2ª. O ambiente continha um excesso de materiais combustíveis comuns, que a 600 ou 700ºC facilmente entrariam na fase do flashover. Quando isso ocorre, mesmo os bombeiros mais experientes não têm mais nada a fazer que não seja assistir a destruição;
3ª. Não consegui identificar no ambiente os dispositivos convencionais de combate a incêndios. Aliás, as cores desses dispositivos – vermelho – e a aparência dos mesmos não se coaduna como cenários temáticos. Mesmo que o existissem e em quantidade adequada, dificilmente um bombeiro civil, sozinho, poderia combater aquele incêndio;
4ª. Edificações improvisadas para o uso precisam ser remodeladas e readequadas, mesmo que internamente, mas os múltiplos usos. A situação mais adequada é a que contivesse a instalação de dispositivos de detecção de calor e de chamas. A instalação mais apropriada ao local seria uma instalação fixa de gás carbônico, que em uma concentração pequena e com o controle de abertura de portas e janelas poderia ser mais bem adequada á proteção, reduzindo as perdas;
5ª. Como a edificação foi adaptada a múltiplos usos, deveriam ter sido instalados dispositivos de compartimentação de ambientes, como o da limitação das áreas por portas corta-fogo, não nos esquecendo de que nessas construções sempre há muita madeira empregada na construção. Após o grande incêndio ocorrido na Estação da Luz em 1946, talvez parte das tesouras do telhado, estruturas que apoiadas nas paredes laterais suportam o peso das telhas de cobertura, tivesse sido substituída por estruturas metálicas. Essas estruturas perdem quase que metade da resistência estrutural quando a temperatura ambiente se encontra acima de 700ºC;
6ª. Um aspecto importante é o que diz respeito a instalações elétricas provisórias. Foram instalados refletores convencionais próximos ao teto. As lâmpadas aquecem o ambiente em cerca de 50/60ºC. Afora isso, como está conectada à instalação existente, pode ter ocorrido um curto-circuito nessa e não, simplesmente, a queima da lâmpada. Não há justificativa técnica de que a substituição de uma luminária por outra possa ser a causa de incêndio. Em nossos estudos estatísticos, muitos publicados na década de 80 na Revista Cadernos de Seguros da FUNENSEG e da FENASEG, os percentuais dessa substituição gerar incêndios é muito baixo. Isso quer dizer que estaríamos tratando de algo da ordem de 0,2%, ou seja, dois acidentes a cada 1.000. Se isso tivesse ocorrido o curto-circuito seria imediato e quem tivesse substituindo a lâmpada teria percebido e controlado o incêndio. O noticiário do Jornal diz que o Bombeiro Civil da edificação, brigadista, teria morrido no terceiro andar. Se isso realmente ocorreu ele estaria em fuga e não em combate ao incêndio.
Pergunta: Prof. por que esses casos sempre se repetem, como o do Terminal de Alemoa, o incêndio da Vila Socó, os incêndios nos Edifícios Andraus e Joelma e mesmo no Edifício Andorinhas, o incêndio no Gran Circus Norte Americano, em Niterói, na década de 60, entre tantos outros mais?
Navarro: Os sinistros se dão porque há nos ambientes situações perigosas, que geram muitos riscos, que passam a ser despercebidos com as pessoas se acostumando às situações. Dentre tantos acidentes citados, um dos mais "esquisitos" foi o do incêndio no Edifício Andorinhas, até então um prédio de 14 andares na Avenida Almirante Barroso, no centro da cidade do Rio de Janeiro. O prédio foi demolido, bastante tempo depois e hoje abriga um conjunto de escritórios da PETROBRAS. Pois bem, muitas das mortes, quase 50% se deram porque na escada de incêndio, naquela época sem nenhuma proteção, o condomínio (tinham várias empresas que alugavam ou eram locatárias das salas. O Condomínio para aumentar a segurança, fechou a subida da escada com uma grade de ferro, da mesma forma que instalou uma grande de ferro no último andar, que dava acesso às caixas d'água e ao telhado). O incêndio começou no 13º andar ocupado pela G&E. Ocorreu um curto-circuito na instalação de um aparelho de ar condicionado de janela atingindo uma cortina de tecido. O incêndio afetou quatro andares, principalmente. No pânico, pessoas foram prensadas na saída do prédio contra as grades e muitas se atiraram das janelas, abrindo-as e passando para o lado de fora, pisando sobre pequenas marquises. A população ficou na rua dando apoio às pessoas, mas essas, em completo estado de pânico e pela exaustão física terminaram caindo de uma altura de cerca de 50 metros.
Pergunta: Prof. o que o senhor recomendaria nesses casos?
Navarro: Não há muito que se recomendar. O Corpo de Bombeiros de São Paulo é considerado um dos melhores do Mundo. Possui grande quantidade de normas e procedimentos, copiadas em vários estados do Brasil. Como em todos os demais Órgãos, carece de mão de obra de fiscalização, e tem grande limitação na aplicação de multas e na interdição de locais. No Brasil, há no mesmo nível o Corpo de Bombeiros de Brasília, do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul. Tragédias ocorreram nesses estados. E por quê? Por inúmeras razões. Apontarem-se falhas após a ocorrência das tragédias é até fácil. O problema maior é identifica-las antes mesmo que se transformem em tragédias. A lição da Estação Ferroviária da Luz é muito simples: improvisação do ambiente, sem se levar em consideração o aumento dos riscos e nem a necessidade de instalação de equipamentos de prevenção e combate a incêndios mais eficazes.
O que chamo a atenção é a da precariedade da proteção do local onde existiam os arquivos magnéticos. O local deveria ser uma verdadeira caixa de concreto, protegida por duas portas corta-fogo, havendo entre as duas uma câmara de insuflação de ar. Certamente houve a penetração de fumaça e de fumos no interior do compartimento. Certamente a umidade está elevada, até mesmo porque há marcar de infiltração de água de combate a incêndio no interior da sala, proveniente da laje superior. Existe uma possibilidade de se recuperar o arquivo digital, mas está na hora de esse ser transferido para outro local mais abrigado. Esse arquivo não necessariamente precisaria estar junto ao local da exposição. Isso sim, é uma verdadeira temeridade.
Pergunta: Prof. o Senhor gostaria de acrescentar mais alguma informação aos nossos leitores?
Navarro: Não, neste momento não. Agradeço a oportunidade de poder me expressar à respeito do tema, e de, se for da conveniência dos entes públicos, poder oferecer minhas experiências e conhecimentos, para que não se perca de vez nossa história. Lembro apenas que no próximo ano teremos as Olimpíadas e tragédias como essa podem ocorrer, tirando o lustro de nosso País, anfitrião das Olimpíadas.