Engº Antonio Fernando Navarro (*)
Pergunta: Professor é possível se prever o rompimento de uma Barragem?
Navarro: Sim, possibilidades existem. Aliás, é possível prever desde a análise do projeto básico.
Pergunta: Como assim, desde o projeto básico?
Navarro: No projeto básico são inseridos todos os elementos que comporão o projeto. Por exemplo, o volume de materiais que a barragem conterá. Também se verificará se o solo da barragem suportará todo o peso de materiais que será represado. Além disso, se mensurará a capacidade da barragem, que nada mais será do que uma parede, presa a duas encostas, levantada para conter em uma bacia um determinado volume de materiais, de efetivamente suportar a pressão que será exercida no acúmulo de materiais depositados. Enfim, durante um projeto todos os aspectos, sejam esses menos ou mais importantes serão levantados e estudados, para a incorporação na construção da barragem.
Pergunta: Quer dizer então que se um projeto for bem dimensionado os riscos serão menores?
Navarro: Sim. Na medida em que tudo aquilo que possa vir a representar algum tipo de risco já foi anteriormente pensado e repensado e adicionado ao projeto executivo.
Pergunta: O Senhor acredita que o projeto da barragem da Samarco tenha sido executado de maneira errada?
Navarro: Não digo de maneira errada, mas sim que em algum momento não se tenham levantado ou verificados todos os aspectos relevantes da segurança da estrutura.
Pergunta: O Senhor poderia exemplificar para nós essa questão?
Navarro: A exemplificação compreenderá uma série de situações:
1ª Imagine você que o local de onde o minério esteja sendo extraído não seja distante, e que a empresa, por falta de outras opções tenha escolhido os locais mais próximos e adequados para a deposição dos rejeitos. O que seria um local mais adequado é todo aquele onde haja encostas nas laterais e um vale em forma de "V". Se for projetada uma barragem na extremidade do vale, tudo o quanto for alí depositado irá se acumulando.
2ª Também imagine que o local escolhido já se encontre com um elevado nível de rejeitos, e que será necessário altear, ou elevar a altura da barragem. Nessa nova obra, tudo o quanto se estudou e adicionou ao projeto ficará prejudicado, pois que a mesma barragem, só que agora um pouco mais alta, irá conter o mesmo tipo de material exercendo uma pressão sobre as paredes da contenção ainda maiores.
3ª A pressão em excesso, considerando que a parede irá se comportar como uma estrutura só produzirá o efeito de alavanca, tendendo a inclinar a extremidade superior da barragem, já que a base deveria estar solidamente presa ao fundo do vale. Nessa pressão adicional, começam a surgir fissuras, seguidas por rachaduras e fendas, e, por fim, na abertura do material que compõe a barragem. A elevação da cota (altura) da barragem pode ter ocorrido? Não sei, mas é uma hipótese plausível que possa justificar a ocorrência do derrame de lama. Outra situação poderia ter ocorrido com a deterioração das encostas que suportam as ombreiras (laterais) da barragem, pela lixiviação do material depositado. Isso também é possível, pois que os rejeitos da mineração têm uma grande composição de água. Como a produção é contínua, continuamente são depositados os rejeitos. O material mais denso vai para o fundo da barragem e o menos denso, a água, fica na superfície. Essa, depois de um tempo de permanência na barragem retorna ao processo.
Pergunta: O Senhor acredita que possa haver novo rompimento, como o da barragem de Germano, que é muito maior das que romperam?
Navarro: Acredito, já que as duas barragens que romperam estavam à jusante, à frente, da barragem de Germano. Assim, de certa forma, apoiavam a barragem, fisicamente. Uma continuada inspeção e acompanhamento da movimentação do terreno poderá indicar, quando e como isso poderá ocorrer.
Pergunta: O Senhor acredita que a existência de avisos sonoros poderia ter evitado as mortes e a destruição?
Navarro: Avisos sonoros apenas alertam os moradores. Se esses estão preparados para uma fuga rápida e são orientados para onde ir, ficarão menos expostos à tragédia. Assim, creio que os alarmes poderiam ter poupado vidas. Quanto ao patrimônio dessas pessoas, com ou sem avisos os danos iriam ocorrer.
Pergunta: O Senhor acredita que o acidente poderia ter sido mitigado sem afetar o mar?
Navarro: A pergunta é complexa. Para haver a mitigação a empresa teria que ter criado canais de desvios, com comportas móveis, e nesses locais deveria ter criado bacias de contenção dos rejeitos. Essa seria a única forma dos rejeitos não caminharem até o mar. Se esses tivessem sido desviados do Rio Doce o desastre teria tido uma menor magnitude.
Pergunta: O Senhor gostaria de acrescentar algo mais aos nossos leitores?
Navarro: Sim. Em primeiro lugar foi um despropósito permitir que tantas barragens pudessem ser construídas em um mesmo ambiente, aproveitando a topografia local. Barragens em série são tais como dominós, que caem quando o primeiro é atingido. Em segundo lugar entendo que muito pouco se fez para proteger as populações próximas. Não deveria existir uma vila quase que no sopé de uma barragem. Isso é inimaginável. Em segundo lugar, até mesmo pelos grandes volumes que armazenam, e em sendo o Rio Doce um importante rio para a região, todos os cuidados deveriam ter sido tomados para a proteção da natureza e das populações. Infelizmente não é só no Brasil que isso ocorre, mas há uma tendência a se permitir que pessoas e riscos elevados estejam tão próximas umas das outras. Você até pode questionar das razões das medidas técnicas de prevenção não terem sido aplicadas antes. Eu responderia que quando se tem de um lado empresas poderosas, que trazem para os Municípios e Estados muita riqueza e emprego, muita coisa é deixada em segundo plano. A população, até por estar empregada naquela específica empresa, termina aceitando tudo como se natural o fosse. Trata-se mais de um caso de resiliência. A pessoa sabe que há riscos, mas que é um local de onde tira o sustento da família. Assim tolera. Casos como esse eu presenciei nos deslizamentos que ocorreram no Estado do Rio em 2010, no Morro do Bumba. Visitando um local onde famílias estavam sendo abrigadas, conversei com uma família de pai, mãe, uma filha e dois filhos, que "moravam" sob uma grande pedra, porque escolheram aquele lugar. A resposta da mãe foi a seguinte: meu filho, nós não temos dinheiro e nem ninguém por nós. Se tivéssemos ficado no asfalto, certamente os traficantes já teriam abusado de minha filha e filhos. Quando viemos para aqui havia um espaçozinho. Construímos um barraquinho de três cômodos. Quando ia chover um de nós ficava acordado. Se ouvisse um estalido da pedra acordava todo mundo e a gente saía correndo. Naquele dia eu estava acordada. Puxei meu marido e meus filhos para fora e foi o tempo que a pedra caiu sobre nosso barraco.
Essa é uma história real, igual à de muitos que morreram sob a lama, que acreditavam nunca sairia daquela barragem. Veio a lama e com ela se foram os sonhos de todos. Agora a lama está no mar, afogando a fauna e flora. As comportas poderiam ter diminuído o risco ou mesmo evitado tanta tragédia.
(*) Antonio Fernando Navarro é físico, engenheiro civil, engenheiro de segurança do trabalho, mestre em saúde e meio ambiente, doutorando em engenharia civil, especialista em gerenciamento de riscos e professor do curso de Ciências Atuariais da Universidade Federal Fluminense.
(29.11.2015)