Por Ariane Lessa e Marcelo J. Gomes (*)
As Entidades Fechadas de Previdência Complementar (EFPCs) desempenham papel central na proteção social brasileira, assegurando a complementação de renda na aposentadoria de milhares de trabalhadores. No entanto, esse setor enfrenta desafios expressivos diante da volatilidade econômica, das crescentes exigências regulatórias e da necessidade de atrair novas gerações de participantes. Liderar uma EFPC é, portanto, um exercício diário de equilíbrio entre tradição e inovação, em que decisões sobre regulação, governança, tecnologia e confiança tornam-se cada vez mais complexas.
O presente ensaio utiliza o conceito de autoinovação (doravante referido como Self-Innovation), entendido como a capacidade do indivíduo de promover mudanças internas em sua forma de pensar, sentir e agir, de modo a potencializar processos de inovação organizacional e sistêmica. Em vez de enxergar a inovação apenas como adoção de novas ferramentas ou produtos, a proposta é encarar a mudança como algo que começa no indivíduo. Para uma liderança de EFPC, isso significa desenvolver a capacidade de:
- Revisitar crenças e padrões internos, muitas vezes moldados por anos de atuação em ambientes conservadores;
- Cultivar abertura e escuta empática, essenciais para compreender as expectativas de participantes que demandam mais clareza e agilidade;
- Transformar a própria postura diante da incerteza, tornando-se referência de resiliência e propósito dentro da entidade.
Na prática, um dirigente que pratica Self-Innovation não se limita a delegar projetos de transformação digital. Ele busca ressignificar sua própria forma de liderar, estabelecendo conexões mais humanas com os participantes, inspirando equipes a inovar e criando uma cultura institucional em que a previdência complementar é percebida não apenas como segurança financeira, mas também como um espaço de cuidado, propósito e futuro atrativo, inclusive para as novas gerações.
A Teoria U de Otto Scharmer
Ao aproximar o Self-Innovation da realidade das EFPCs, é possível encontrar um paralelo direto com a Teoria U de Otto Scharmer, que enfatiza que “a qualidade dos resultados de um sistema depende da qualidade da consciência a partir da qual os atores operam” (SCHARMER, 2009). Para Scharmer, a inovação genuína não emerge apenas de análises racionais ou da repetição de práticas bem-sucedidas do passado, mas de um mergulho profundo em novas formas de perceber, sentir e agir.
Essa jornada em forma de “U” convida o líder a atravessar três grandes movimentos interdependentes. O primeiro consiste em abrir a mente, ou seja, desapegar-se de velhas certezas e reconhecer os desafios do setor com olhar renovado. Em seguida, é necessário abrir o coração, desenvolvendo empatia para escutar de forma genuína os participantes e compreender suas necessidades não atendidas. Por fim, o processo demanda abrir a vontade, acessando a coragem necessária para cocriar soluções que respondam ao futuro desejado, e não apenas às pressões imediatas.
Contudo, o ponto de ruptura mais radical da Teoria U é a etapa de presencing, em que líderes e organizações são desafiados a “deixar morrer” padrões antigos de identidade e práticas institucionais para “deixar vir” uma nova forma de operar conectada ao futuro emergente. No caso das EFPCs, isso significa abandonar crenças defensivas associadas ao excesso regulatório e estruturas de poder fragmentadas, abrindo espaço para uma atuação mais transparente, inovadora e conectada aos valores das novas gerações.
Na rotina de uma EFPC, essa prática pode se traduzir em algo concreto: desde a forma como uma diretoria conduz um processo de transformação digital até a maneira como comunica resultados complexos de investimento de forma clara e acessível aos participantes. Assim, a liderança passa a atuar não apenas como gestora de recursos, mas como guardião de confiança e de propósito, unindo solidez institucional e inovação orientada ao futuro.
Self-Innovation: da transformação pessoal à organizacional
O conceito de Self-Innovation propõe que a verdadeira inovação nasce da transformação do indivíduo. Ao cultivar autoconhecimento, resiliência, propósito e flow, líderes tornam-se aptos a liderar processos de inovação organizacional sustentáveis e coerentes.
Aplicado às EFPCs, isso significa:
- Autoconhecimento do líder: reconhecer limitações, crenças e padrões culturais que historicamente freiam a modernização do setor;
- Transformação do mindset: substituir uma visão excessivamente regulatória e defensiva por uma perspectiva de aprendizado contínuo, adaptabilidade e foco no participante;
- Integração pessoal-organizacional: alinhar valores individuais de propósito e cuidado com a missão institucional de prover segurança previdenciária, tornando a inovação mais autêntica e legítima.
Desafios específicos das EFPCs e a contribuição do Self-Innovation
Um dos principais entraves das EFPCs está na carência de ferramentas digitais claras e acessíveis, o que frustra os participantes e mina a confiança. Líderes que praticam Self-Innovation compreendem que a digitalização não é apenas técnica, mas também relacional. Por isso, buscam promover interfaces mais humanizadas e inclusivas, estruturadas a partir da experiência do participante e não apenas da lógica dos processos internos. Além disso, enxergam a tecnologia como um meio de fortalecimento da confiança, em vez de simples exigência de eficiência, e incentivam suas equipes a experimentar novas soluções de comunicação e interação digital, reduzindo resistências internas.
A comunicação também constitui um desafio recorrente, pois a forma de transmissão de informações gera desconfiança e desinteresse, especialmente entre as novas gerações. Nesse sentido, o Self-Innovation fornece instrumentos para que as lideranças pratiquem uma escuta empática, incorporando de fato as percepções e demandas dos participantes. Dessa prática emergem relatórios técnicos transformados em narrativas acessíveis e conectadas ao propósito de vida das pessoas, além da construção de canais de diálogo contínuo em que o participante deixa de ser apenas cliente e passa a atuar como coautor da experiência previdenciária.
Outro ponto crítico refere-se à atratividade das EFPCs para as novas gerações, que buscam soluções alinhadas a valores de propósito, sustentabilidade e flexibilidade. Líderes que inovam em si mesmos são capazes de alinhar o discurso institucional à lógica de impacto social e ambiental, dialogando com os valores contemporâneos. Além disso, podem fomentar a criação de produtos previdenciários customizados e digitais, compatíveis com o estilo de vida jovem, e reposicionar a entidade como um espaço de educação financeira e de promoção do bem-estar integral, ampliando sua relevância para além da aposentadoria.
Por fim, uma cultura organizacional mais conservadora, ainda representa barreira significativa à inovação no setor previdenciário. A prática do Self-Innovation permite que líderes enfrentem suas próprias resistências internas ao risco, tornando-se aptos a conduzir mudanças no coletivo. Com isso, podem inspirar equipes a compreender que a segurança previdenciária não é antagônica à inovação, mas que ambas podem se fortalecer mutuamente. Dessa forma, a transformação cultural passa a ser conduzida com base em diálogo, confiança e experimentação incremental, criando um ambiente propício para a renovação institucional.
Limitações estruturais à prática do Self-Innovation
Estudos indicam que apenas 57,67% das práticas recomendadas de governança são efetivamente adotadas pelas EFPCs, com forte desigualdade entre categorias como o Conselho Deliberativo (96%) e a Gestão de Riscos (39%) (FALCÃO; ALVES, 2018). Esse déficit de governança é ainda mais preocupante diante das pressões demográficas, como o envelhecimento populacional e a queda da fecundidade, que ampliam os riscos atuariais e exigem maior capacidade de adaptação das entidades (PINHEIRO, 2007). Muitas recomendações da Previc são implementadas de forma desigual quando adaptadas ao tamanho e ao porte de cada entidade. Tal fato gera assimetrias institucionais que dificultam tanto a transformação individual quanto a inovação coerente com o propósito coletivo.
Esses resultados demonstram que, mesmo que líderes individuais passem por processos de Self-Innovation, existem barreiras estruturais que limitam o alcance dessa mudança. Entre as mais relevantes, destacam-se:
- Governança desigual: no momento em que os órgãos de governança estão mais preocupados com suas obrigações legais e fiduciárias, líderes inovadores encontram pouca sustentação institucional para apoiar iniciativas de transformação.
- Baixa autorresponsabilização da transparência: a ausência de ouvidorias e de canais claros de comunicação reduz a capacidade de engajamento coletivo, fragilizando o impacto de lideranças auto inovadoras.
- Conflitos de agência persistentes: embora líderes possam desenvolver propósito e visão de futuro, a estrutura institucional ainda favorece interesses fragmentados entre patrocinadores, instituidores, conselhos e participantes, limitando o impacto da inovação.
Self-Innovation como ponte para a sustentabilidade do setor
Ao aplicar a lógica de Self-Innovation, as lideranças das EFPCs passam a operar em três níveis integrados:
- Individual: desenvolvimento de competências pessoais como resiliência, adaptabilidade e liderança consciente;
- Organizacional: incorporação de práticas de inovação, digitalização e comunicação transparente, guiadas por valores de confiança e cuidado;
- Sistêmico: fortalecimento do papel social das EFPCs como instituições que contribuem para a sustentabilidade previdenciária e para o bem-estar das futuras gerações.
Essa abordagem potencializa a atratividade para novos participantes, sobretudo jovens, ao reposicionar a previdência complementar fechada como um negócio inovador, digital, transparente e alinhado a propósitos sociais e ambientais.
Conclusão
As Entidades Fechadas de Previdência Complementar encontram-se diante de um dilema estratégico: permanecer na zona de conforto regulatória, mantendo estruturas conservadoras que lhes garantem estabilidade, ou avançar em direção a modelos mais inovadores que lhes permitam reconquistar relevância junto à sociedade e, em especial, às novas gerações. A urgência deste avanço se confirma à medida que a redução das taxas de fecundidade e o aumento da longevidade alteram profundamente o equilíbrio atuarial dos fundos de pensão (PINHEIRO, 2007).
A inovação necessária, no entanto, não pode ser entendida apenas como digitalização de processos ou criação de novos produtos. Ela exige uma transformação humana nas lideranças, capaz de gerar uma cultura institucional mais aberta, transparente e conectada ao propósito coletivo. Afinal, como demonstra Pinheiro (2007), riscos atuariais e demográficos, como mortalidade e envelhecimento populacional, afetam diretamente a sustentabilidade das EFPCs e só podem ser enfrentados com lideranças capazes de lidar com incertezas complexas. O Self-Innovation, ao propor que a mudança se inicie no indivíduo, representa um caminho potente para que dirigentes se tornem catalisadores de processos transformadores. Isso é particularmente relevante diante da transição dos planos de BD (benefício definido) para CD (contribuição definida), que transfere parte dos riscos do patrocinador para o participante, exigindo maior protagonismo individual (PINHEIRO, 2007).
Todavia, conforme evidenciado pelos estudos sobre governança em EFPCs, existem barreiras estruturais significativas como assimetrias de governança, baixa institucionalização da transparência como valor institucional e persistência de conflitos de agência que limitam o alcance da transformação individual. Isso significa que o esforço pessoal de líderes autoinovadores precisa estar articulado a mudanças institucionais e regulatórias mais amplas, que criem um ambiente propício para a inovação.
Portanto, a sustentabilidade do setor dependerá da capacidade de conciliar duas dimensões: de um lado, líderes mais conscientes, resilientes e orientados a propósito; de outro, reformas institucionais e práticas de governança que apoiem e amplifiquem esses esforços individuais. Somente assim as EFPCs poderão superar seus desafios históricos, engajar as novas gerações e consolidar-se como organizações que unem tradição de segurança com ousadia de futuro.
Referências:
FALCÃO, G. de Q.; ALVES, C. A. M. Governança corporativa e entidades fechadas de previdência complementar no Brasil: análise baseada em recomendações da Previc.
Revista de Governança Corporativa, São Paulo, v. 4, n. 2, p. 90-117, abr. 2018. DOI: https://doi.org/10.21434/rgc.v4i2.62. Disponível em: https://sustainableinstitutional.org/Journals/article/view/32/39. Acesso em: 2 set. 2025.
PINHEIRO, Ricardo Pena. A Demografia Dos Fundos De Pensão. [S.l.]: Mps, 2007.
SCHARMER, C. Otto. Theory U: leading from the future as it emerges. 2. ed. San Francisco: Berrett-Koehler, 2009.
(*) Ariane Lessa é Gerente Executiva do OABPrev-RS e Coordenadora do Comitê de Tecnologia e Inovação da Abrapp, já Marcelo J. Gomes é Membro do Comitê de Tecnologia e Inovação da Abrapp.
Fonte: Abrapp em Foco, em 18.09.2025