Por Marcos Cunha Orofino Junior[*]
1. Introdução e Escopo
O Capítulo VI (“Disposições Finais e Transitórias”) da Lei 15.040/24 (“Lei de Seguros”) reúne, em sua maioria, dispositivos de natureza processual. Entre eles, destacam-se: a possibilidade de pactuação de convenção de arbitragem nos contratos de seguro, que deverá ser feita no Brasil e submetida às regras do direito brasileiro (art. 129, caput); a determinação para que a Superintendência de Seguros Privados (“SUSEP”) regulamente a divulgação obrigatória dos conflitos e das respectivas decisões arbitrais, sem identificação das partes, em repositório de fácil acesso (art. 129, parágrafo único); e a fixação do domicílio brasileiro da seguradora, resseguradora ou retrocessionária como foro competente para ações e arbitragens promovidas entre si e que possam interferir diretamente na execução de contratos de seguro (art. 131, parágrafo único).
O presente estudo analisa os referidos dispositivos sob três perspectivas: sua necessidade, sua conformidade com os princípios orientadores da Lei 9.307/96 (“Lei de Arbitragem”) e seus possíveis impactos práticos, especialmente em contratos celebrados com seguradoras estrangeiras ou resseguradoras admitidas ou eventuais.
2. O que se sabe
O art. 129, caput, da Lei de Seguros, admite a pactuação de meios alternativos de resolução de litígios, inclusive a arbitragem, nos contratos por ela regidos, condicionando a validade da convenção de arbitragem à celebração de instrumento assinado pelas partes.
A intenção do legislador, que é legítima, é assegurar a efetiva ciência do segurado quanto à convenção de arbitragem, aqui tomada como gênero que abrange tanto a cláusula compromissória quanto o compromisso arbitral[1]. Contudo, a própria Lei de Arbitragem já disciplina os requisitos de validade da cláusula compromissória em contratos de adesão, determinando que ela “só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula”[2].
Nem mesmo há dúvidas quanto à arbitrabilidade de matérias securitárias que pudessem justificar a previsão da Lei de Seguros. A Lei de Arbitragem é clara ao afirmar que são arbitráveis as disputas relativas a “direitos patrimoniais disponíveis”[3].
Também vale notar que a Lei de Seguros, ao se referir à pactuação da resolução alternativa “mediante instrumento assinado pelas partes”, carece de clareza quanto à possibilidade de se convencionar a arbitragem por meio de cláusula inserida no próprio contrato de seguro. Novamente, trata-se de ponto já suficientemente abordado pela Lei de Arbitragem, que admite a convenção em documento apartado (compromisso arbitral) ou em cláusula inserta no contrato de adesão, desde que com “assinatura ou visto especialmente para essa cláusula”.
Sob essas perspectivas, o art. 129, caput, da Lei de Seguros, não inova, e é redundante quanto à arbitrabilidade da matéria e à validade formal da convenção de arbitragem. Adicionalmente, a falta de clareza quanto à possibilidade de pactuação de cláusula arbitral pode gerar interpretações que comprometam a aplicabilidade prática da convenção de arbitragem.
3. O que se teme
Partindo da premissa de que os contratos de seguro são essencialmente de adesão, a Lei de Seguros não faz distinção entre seguros massificados e de grandes riscos, nem entre aqueles submetidos ou não ao Código de Defesa do Consumidor (“CDC”). A parte final do art. 129, caput, da Lei de Seguros, combinada com essa estrutura, levanta preocupações.
Ao determinar que a arbitragem seja sediada no Brasil e regida pelas regras do direito brasileiro, a lei estende a relações negociais paritárias o mesmo regramento aplicável a relações jurídicas desbalanceadas. Embora essa proteção seja justificável em contratos celebrados sem qualquer margem de negociação ou regidos pelo CDC, ela pode não ser vantajosa para qualquer das partes em cenários específicos, como na contratação de seguros no exterior nas hipóteses autorizadas pelo art. 20 da LC 126/2007.
Uma das características mais atrativas da arbitragem, especialmente no contexto internacional, é o fato de que a autonomia privada é prestigiada em seu “grau máximo”[4]. Essa autonomia se aplica tanto à escolha da arbitragem como método de resolução do litígio quanto a “todas as questões que gravitam em torno dessa opção”[5].
Duas facetas dessa autonomia são a possibilidade de escolha do local onde se desenvolverá a arbitragem[6], comumente estabelecido em uma jurisdição neutra para ambas as partes, e a escolha das regras de direito aplicáveis ao procedimento e ao direito material contido no contrato[7]. Assim, as restrições à autonomia privada impostas pela Lei de Seguros podem, no contexto aqui abordado, afetar o apetite de seguradoras estrangeiras pela subscrição de riscos oriundos do Brasil.
Algo semelhante ocorre na relação entre seguradoras, resseguradoras e retrocessionárias. O art. 131, parágrafo único, da Lei de Seguros, determina que caso submetam suas disputas à arbitragem e tais disputas “possam interferir diretamente na execução dos contratos de seguros sujeitos a esta lei”, seguradoras, resseguradoras e retrocessionárias respondam no foro do seu domicílio no Brasil.
As observações já feitas sobre excessivas restrições à autonomia privada, sobretudo no contexto de contratos celebrados por partes situadas em diferentes jurisdições, também se aplicam a esse dispositivo. Contudo, a norma dá azo a outras questões relevantes, e o presente artigo, dada a limitação do seu escopo, focará naquelas que envolvem o mercado de resseguro.
Primeiro, a Lei de Seguros é silente quanto à legislação aplicável à relação de resseguro. Com efeito, o art. 4º, § 1º, determina a aplicação exclusiva da lei brasileira 1) aos contratos de seguro celebrados por seguradora autorizada a operar no Brasil; 2) quando o segurado ou o proponente tiver residência ou domicílio no Brasil; ou 3) quando os bens sobre os quais recaírem os interesses garantidos se situarem no Brasil.
Se, por um lado, a omissão pode ser positiva por não proibir a eleição de legislação estrangeira, por outro, maior clareza nesse ponto seria bem-vinda, especialmente considerando a restrição imposta aos contratos de seguro, já abordada. Uma questão que se levanta é se a obrigatoriedade de aplicação da lei brasileira nos procedimentos arbitrais relativos a contratos de seguro poderá, na prática, ser indevidamente interpretada como extensível aos de resseguro com impactos diretos na execução de contratos de seguro.
Segundo, a Lei de Seguros não é clara quanto ao domicílio a ser utilizado para a fixação da competência caso a ação judicial ou processo arbitral seja inaugurado no território brasileiro. Seria ele o domicílio da seguradora, da resseguradora ou, se houver, da retrocessionária? Todos esses atores são mencionados pelo mesmo dispositivo legal e podem ter domicílios diversos.
Terceiro, a que circunstância a Lei de Seguros se refere ao mencionar o requisito da interferência direta na execução de contratos de seguro? Trata-se de questão especialmente sensível, pois a definição desse critério implicará na fixação da competência do foro brasileiro para ações judiciais e arbitragens. Reitera-se que imposições dessa espécie poderão impactar o interesse de resseguradoras (admitidas ou eventuais) na subscrição de riscos originados do Brasil.
Na ausência dessa interferência, seguradoras, resseguradoras ou retrocessionárias terão maior autonomia para definir o local de processamento do litígio. É de se esperar que o mercado busque compreender como essa distinção deverá ser feita.
A Lei de Seguros tem entre seus objetivos fomentar o desenvolvimento econômico pela ampliação do mercado de seguros[8] e a fixação do foro brasileiro como competente para as arbitragens envolvendo contratos de seguro ou resseguro é uma parte das ferramentas adotadas nesse sentido. Contudo, a imposição da realização de procedimentos arbitrais no território nacional, com aplicação da legislação brasileira (sobretudo no caso dos contratos de seguro), pode ter o efeito adverso de limitar as opções de segurados e seguradoras interessados em contratar com seguradoras situadas no exterior ou com resseguradoras admitidas ou eventuais, respectivamente.
Por último, do ponto de vista do estímulo à utilização do Brasil como sede para a resolução de disputas internacionais por meio de arbitragem, o esforço da Lei de Seguros, cujas consequências adversas foram brevemente abordadas, talvez não fosse necessário.
De acordo com o relatório anual de arbitragem internacional do Freshfields para 2025[9], desde o ano de 2023, o número de arbitragens sediadas no Brasil superou aquelas que apenas aplicam a lei brasileira ou envolvem exclusivamente partes brasileiras - dado que evidencia a já crescente proeminência do país no cenário da arbitragem internacional. Resta observar se as alterações trazidas pela Lei de Seguros contribuirão para a continuidade desse crescimento ou, ao contrário, o impactarão negativamente.
4. O que se espera
Considerada isoladamente, a previsão contida no art. 129, parágrafo único, da Lei de Seguros, pode parecer uma medida administrativa de menor impacto. Contudo, ao determinar que a SUSEP discipline a “divulgação obrigatória dos conflitos e das decisões respectivas, sem identificações particulares, em repositório de fácil acesso aos interessados”, a norma levanta questões sensíveis, sobretudo no que se refere à confidencialidade da arbitragem.
Atualmente, regulamentos de câmaras arbitrais, guardadas as particularidades de cada um, costumam permitir a publicação de sentenças ou extratos de sentenças, salvo convenção em contrário[10][11]. No entanto, o dispositivo em análise limita a autonomia das partes ao impor a divulgação de “conflitos” e “decisões respectivas”, retirando delas a possibilidade de impedir a publicação de todo e qualquer dado sobre a disputa – o que não raras vezes é comercialmente indispensável e justifica a escolha da arbitragem como método de resolução de disputas.
De fato, a confidencialidade, juntamente com outras características da arbitragem, como a flexibilidade, é um dos principais fatores considerados pelas partes ao escolherem esse método para resolver disputas comerciais. Seu objetivo é proteger a reputação das partes, o sigilo dos negócios e informações estratégicas para o desenvolvimento de suas atividades[12]. Retirar essa característica, ainda que parcialmente, pode ter sido uma escolha legislativa desalinhada com os princípios e objetivos da arbitragem.
Por outro lado, reconhece-se o interesse da coletividade na formação de precedentes e no desenvolvimento interpretativo da norma, algo que certamente foi considerado pelo legislador ao redigir o dispositivo em questão.
A título de exemplo, um levantamento da Solomonic[13] divulgado em junho de 2025 revela o crescimento constante de litígios securitários nas cortes inglesas, apontando que já ocupam o segundo lugar entre as causas mais judicializadas. Um ponto evidente de preocupação, entretanto, é a insuficiência de dados sobre as disputas resolvidas por arbitragem, tanto em termos quantitativos quanto pela impossibilidade de utilizar as sentenças arbitrais como método para o desenvolvimento da interpretação legal[14].
O dispositivo, portanto, pode representar um avanço na busca por maior transparência e desenvolvimento da interpretação normativa. O desafio será conciliar a preservação da confidencialidade da arbitragem com a adoção de mecanismos que permitam que as sentenças arbitrais relacionadas ao direito de seguros contribuam para esse desenvolvimento. Caberá à SUSEP regulamentar com precisão sobretudo os termos “conflitos” e “identificações particulares”, talvez optando pela divulgação de dados puramente estatísticos, como já sugerido pela Arbitralis[15].
5. Conclusão
Embora a Lei de Seguros busque impulsionar o mercado de seguros e a arbitragem internacional no Brasil, a imposição de restrições à autonomia das partes como a fixação do foro brasileiro e a obrigatoriedade de aplicação das regras brasileiras podem gerar efeitos adversos, limitando opções para segurados e seguradoras buscando contratar com seguradoras estrangeiras ou resseguradoras admitidas ou eventuais. A adequação interpretativa da Lei de Seguros às dinâmicas do mercado global, tanto do ponto de vista da aplicação da lei material, quanto do ponto de vista da resolução de disputas internacionais, será fundamental.
Por sua vez, a regulamentação da SUSEP sobre a divulgação de decisões arbitrais representa um esforço por maior transparência e desenvolvimento da interpretação normativa, mas exigirá equilíbrio para que não comprometa a confidencialidade do procedimento, preservando uma das suas características essenciais.
[*] Marcos Orofino é advogado no Santos Bevilaqua Advogados, graduado em Direito pela PUC-Rio, pós-graduado em Direito do Consumidor e Responsabilidade Civil pela EMERJ, e mestre (LL.M.) em Direito Comercial e Corporativo pela Queen Mary University of London.
[1] Lei 9.307/96, Art. 3º: “As partes interessadas podem submeter a solução de seus litígios ao juízo arbitral mediante convenção de arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o compromisso arbitral.”
[2] Lei 9.307/96, art. 4º, §1º
[3] Lei 9.307/96, art. 1º
[4] CAHALI, Francisco José. Custo de arbitragem: mediação, conciliação, Tribunal Multiportas. 6. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. e-book. p. 136.
[5] Idem
[6] Lei 9.307/96, Art. 4º, §2º:“Art. 2º A arbitragem poderá ser de direito ou de eqüidade, a critério das partes. § 1º Poderão as partes escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública.”
[7] Lei 9.307/96, Art. 11. “Poderá, ainda, o compromisso arbitral conter: (...) IV - a indicação da lei nacional ou das regras corporativas aplicáveis à arbitragem, quando assim convencionarem as partes;”
[8] BRASIL. Ministério da Fazenda. Nova Lei de Seguros é sancionada: marco legal faz parte de agenda de reformas com potencial de impulsionar economia sem gerar inflação. Disponível em: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2024/dezembro/nova-lei-de-seguros-e-sancionada-marco-legal-faz-parte-de-agenda-de-reformas-com-potencial-de-impulsionar-economia-sem-gerar-inflacao. Acesso em: 11 jun. 2025.
[9] FRESHFIELDS BRUCKHAUS DERINGER. The internationalization of arbitration in Brazil: a rising trend. Disponível em: https://www.freshfields.com/en/our-thinking/campaigns/international-arbitration-in-2025/the-internationalization-of-arbitration-in-brazil-a-rising-trend. Acesso em: 12 jun. 2025.
[10] CÂMARA BRASILEIRA DE MEDIAÇÃO E ARBITRAGEM EMPRESARIAL – CBMA. Regulamento da CBMA. Art. 22: “O Centro poderá dar publicidade à sentença arbitral, salvo se alguma das Partes se opuser por escrito. Mesmo em caso de oposição, poderá o Centro, de qualquer modo, divulgar excertos de sentença arbitral, desde que preservada a identidade das partes (...)”. Disponível em: https://cbma.com.br/regulamento/. Acesso em: 11 jun. 2025.
[11] ARBITRALIS. Código de Processo de Tramitação dos Requerimentos de Arbitragem da Arbitralis. Art. 116: “A Arbitralis poderá publicar extrato das sentenças arbitrais proferidas, o qual não conterá a identificação individualizada das partes, salvo manifestação destas em sentido contrário.” Disponível em: https://www.arbitralis.com.br/regulamentos/codigo-de-processo-de-tramitacao-dos-requerimentos-de-arbitragem-da-arbitralis. Acesso em: 11 jun. 2025.
[12] Idem, p. 269
[13] SOLOMONIC. Insurance sector litigation trends. Londres, 2025. Material distribuído em 4jun. 2025.
[14] MARCOS CUNHA OROFINO JUNIOR. Shifting Trends in Complex Insurance Disputes - From Court to Arbitration. Disponível em: https://arbitrationblog.kluwerarbitration.com/2025/06/12/lidw-2025-shifting-trends-in-complex-insurance-disputes-from-court-to-arbitration/. Acesso em: 12 jun. 2025.
[15] ARBITRALIS. Nova Lei de Seguros (Lei 15.040/24): O Impacto do Art. 129 na Arbitragem e a Nova Era da Transparência. Disponível em: https://www.arbitralis.com.br/blog/nova-lei-de-seguros. Acesso em: 12 jun. 2025.
(29.09.2025)