Por Andréa de Sousa Machado (*)
Uma das grandes inovações da Lei Anticorrupção, se não a principal, é a possibilidade de a pessoa jurídica ser punida por atos ilegais por ela praticados diretamente ou por intermédio de terceiros contratados, independentemente de culpa e sem a necessidade de que se tenha beneficiado.
E diga-se, as sanções não são apenas de cunho financeiro, aplicáveis no âmbito administrativo, mas também relacionadas à imagem da pessoa jurídica. Já, na via judicial, além da reparação integral do dano causado, a pessoa jurídica se sujeita (a) ao perdimento dos bens, direitos ou valores que representem a vantagem auferida, se aplicável, (b) à proibição de receber incentivos, doações ou empréstimos de entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo de 1 a 5 anos, (c) à suspensão ou interdição parcial de suas atividades, e (d) à penalidade máxima com a dissolução compulsória da pessoa jurídica, desde que comprovado o uso da personalidade jurídica de forma habitual para facilitar ou promover a prática de atos ilícitos ou ainda a criação de pessoa jurídica para ocultar ou dissimular interesses ilícitos ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados.
Por tal razão, pessoas jurídicas sujeitas à Lei Anticorrupção devem ser cautelosas ao promover reestruturações societárias em virtude da subsistência de responsabilidade em casos de alteração contratual, operações de transformação, cisão, incorporação ou fusão societária, além de arranhar a reputação e a imagem construídas ao longo do tempo.
É fato que a Lei Anticorrupção limita a responsabilidade à sucessora em determinados cenários, tais como fusões e incorporações, em que a sanção é restrita à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado, até o limite do patrimônio transferido, observado que as demais sanções se aplicam somente em caso de simulação ou evidente intuito de fraude, devidamente comprovados.
Tais regras expressamente previstas na Lei Anticorrupção provocaram (ou deveriam ter provocado) uma mudança na conduta adotada em reorganizações societárias, de forma que o cuidado e a diligência da pessoa jurídica passaram a ser redobrados, além das demais preocupações de praxe, seja na posição de vendedora como também ao atuar como compradora.
1. Atuação como Vendedora
Simplificar a estrutura operacional, obter investimentos e receber injeção de capital, desfazer-se de uma divisão de negócios não mais rentável, aperfeiçoar a estrutura administrativa, são alguns de muitos fundamentos que levam a pessoa jurídica a segregar ativos de seu grupo econômico ou vender participação societária. Para tanto, é necessária a respectiva preparação no âmbito jurídico, sem deixar de lado os demais aspectos relevantes neste contexto, tais como aqueles econômico-financeiros e contábeis. A preparação em questão considerando as precauções relacionadas à Lei Anticorrupção consiste em:
1. Auditoria Interna: é recomendável à pessoa jurídica interessada em alienar participação societária realizar uma auditoria interna de compliance, com o levantamento de informações e documentos, bem como o tratamento adequado a respeito de contingências e riscos previamente identificados, como a revisão de contratos para inclusão de cláusulas específicas de compliance.
2. Programas de Integridade: implantar programas de integridade, tais como códigos de ética e de conduta, manuais de procedimento, canais de denúncia, auditoria de parceiros, treinamento de empregados e de parceiros, investigações internas, entre outros. Vale dizer que a existência de um programa de integridade comprovadamente efetivo pode atenuar sanções aplicadas, caso seja instaurado um procedimento administrativo para a apuração do ato ilícito caracterizado na Lei Anticorrupção. Em caso de a vendedora já adotar programas de integridade, deve aperfeiçoá-los com a adoção de medidas anticorrupção, caso ainda não existentes.
Assim, a implantação de procedimentos e mecanismos internos para prevenir, identificar e sanar, efetivamente, a ocorrência (e reiteração) de irregularidades, desvios, fraudes e atos lesivos é essencial para a preparação da pessoa jurídica interessada em realizar reorganizações societárias.
2. Atuação da Compradora
Por outro lado, quando se pretende adquirir participação societária, é necessária a análise cuidadosa do objeto da aquisição e tudo o que o envolve, antes de tomar a decisão pelo prosseguimento ou não da operação em questão. Tal análise deve contemplar a condução de auditoria jurídica de compliance, entre outros costumeiros à transação, com a abordagem de aspectos aplicáveis ao caso, com destaque a:
1. Auditoria: preparação de lista de auditoria com itens específicos de compliance, para verificar se há ou não implicação em atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira. Tal análise, ressalte-se, não deve se restringir à pessoa jurídica da qual se pretende adquirir participação societária, mas envolver também o grupo econômico, observado que a extensão dessa abordagem deve ser definida caso a caso. Isto por conta de as sociedades controladoras, controladas, coligadas solidariamente responsáveis pela prática dos atos ilícitos. Além disso, deve ser confirmada a utilização ou não de terceiros em suas atividades, caso exista interface com a administração pública;
2. Políticas de Controles Internos: na hipótese de existência de mecanismos e políticas de controles internos, tais como a adoção de regras exigidas pelo FCPA ou UK Bribery Act, verificar se a pessoa jurídica alvo efetivamente cumpre tais políticas, o que representa um sinal positivo, mas não significa que não tenha havido ofensa à Lei Anticorrupção, já que esta vai além do pagamento de propina (à qual estão restritos o FCPA e UK Bribary Act), abrangendo práticas relacionadas ou decorrentes da contratação com a administração pública;
3. Cadastros: realização de consultas ao Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas (CEIS) e demais cadastros disponíveis pela administração pública ao público em geral para confirmar se a pessoa jurídica da qual se pretende adquirir participação societária está ou não listada como suspensa, proibida ou impedida de licitar, se foi declarada inidônea ou, ainda, se sofreu a aplicação de sanções administrativas.
1. Mercado: analisar o setor do mercado em que atua e o grau de interação com o setor público, bem como a importância de autorizações, licenças e permissões governamentais em suas operações;
2. Interface com a Administração Pública: analisar a existência de contratação com órgãos públicos em decorrência de licitações ou contratações diretas, bem como a existência de processos administrativos e/ou judiciais relacionados ou decorrentes de licitações ou contratações diretas, e ainda contratos com terceiros, inclusive prestadores de serviços, representantes e/ou distribuidores;
3. Entrevistas: obter informações com empregados e membros de órgão da administração, equipes de venda e outros departamentos relevantes para avaliar a prática e os procedimentos das sociedades envolvidas na auditoria.
O escopo acima não é limitado e pode abranger outros aspectos tão relevantes quanto estes. A auditoria deve ser capaz de identificar as vulnerabilidades nos procedimentos internos de forma a alterá-los e/ou aprimorá-los para redução dos riscos de irregularidades ou ilícitos, não bastando apenas identificar ilícitos já cometidos ou em curso. Isto porque os riscos de sucessão de responsabilidade e, por consequência, de penalidades decorrentes da prática de atos de corrupção em operações de reestruturação societária, são reais e, portanto, o bom planejamento e a definição do escopo da auditoria, inclusive reputacional, assim como o entendimento de toda a estrutura organizacional da sociedade a ser adquirida são cruciais para a proteção da pessoa jurídica adquirente.
3. Conclusão
Para mitigar riscos de sucessão aplicáveis a operações da espécie, é necessária a inclusão de dispositivos no contrato de compra e venda, relacionados a declarações e obrigações, programas de compliance e indenização e garantias. Apenas como referência, vale dizer que no Brasil não existem mecanismos como aqueles nos Estados Unidos da América, com sistema mais avançado, que autoriza acordos com o DOJ e SEC antes da conclusão da operação de fusão e aquisição, de forma que ao adquirente é possível se eximir das penalidades relacionadas a atos de corrupção praticados pelos vendedores ou pela empresa alvo. Já no Brasil é até possível realizar um acordo de leniência, mas não há garantias de que as penalidades não serão aplicadas à pessoa jurídica adquirente.
(*) Andréa de Sousa Machado é Membro das práticas de Anticorrupção e Integridade Corporativa e de Societário, Fusões e Aquisições, Bancário e Operações Financeiras e Financiamento de Projetos no escritório Dias Carneiro, Arystóbulo, Flores, Sanches, Turkienicz, Amendola, Waisberg e Thomaz Bastos Advogados. Atuou no Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.
Fonte: LEC, em 01.04.2016.